Como todo
pensamento tem seu fundamento em reflexões direcionadas para questões da vida,
a doutrina do Übermensch (“além-do-homem” ou super-homem) de Nietzsche não foi diferente, segue um caminho para
fornecer uma solução para o problema do marasmo humano. Intencionado em despertar
o conceito de uma nova metafísica numa sociedade estagnada no niilismo, ousou
demonstrar a potencialidade do ser humano em superar a si mesmo, porém, não
mais se preocupando com valores cristalizados, estabelecidos em postes monumentais
cujas “obras notáveis” dos grandes vultos da ciência prendiam o indivíduo numa
formalidade hermética. Ele foi além, apresentou de maneira acessível qual
direção tomar; por mais que isto não tivesse sido reconhecido em sua época,
atendeu ao seu desejo de explanar o que estava latente aos sujeitos, todavia,
algo que ninguém ousava comentar, pois era assunto de teor intempestivo.
Um dos
conceitos de sua teoria, a prostração humana, pode ser verificado nas mais
diversas situações da vida. Para tanto, enumerarmos duas situações para estabelecermos
uma relação com o pensamento Nietzschiano: no caso de um monge, não seria
difícil verificarmos um comportamento de negação da vida mundana. Ademais, o
mesmo se apega a uma conduta de obediência no serviço divino numa tentativa de
ser aceito pelo Deus Todo-Poderoso. Semelhantemente, Raymond Aron, em reflexão
quanto ao pensamento weberiano na questão da Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, informa que a
prosperidade seria a comprovação da aceitação divina no que dizia respeito à
salvação eterna para os calvinistas. Ambos os pensamentos, o do monge e do
protestante (segundo Aron), prendem-se a uma situação de renúncia terrena dos
devaneios, evocando uma vida supra terrena onde a Deidade ordena a vida regrada
para fins de deleites eternos. Isto, segundo Nietzsche, é sufocar para
aniquilar com aquele bem dissimulado no homem. É deter a natureza pela qual o
ser humano pode viver, mas se encontra “amedrontado”, impedido pela consciência
de rumar contra a corrente.
O objetivo de Nietzsche
ter criado Zaratustra, que é personagem chave nesta sua investida, evidencia
sua argumentação confrontante. O mesmo simboliza “a auto superação da
moralidade”. Foi ele quem criou a moral, “o mais fatal dos erros”, por isso,
deverá reconhecê-la, constatando seus efeitos, e assim superá-la. Desta
maneira, Zaratustra será o exemplo motivador da doutrina do Além-do-Homem de
onde aqueles que buscam percorrer a jornada entre o animal e o super-homem deverão estar fundamentados.
A motivação decorre da anunciação de que o homem é alguém a
ser superado, visto que sua situação não exalava um entendimento da
transitoriedade da vida, tendo como consequência à falta da consumação de seus
desejos. Desta feita, surge a necessidade de desconsiderar as esperanças
supraterrenas e admitir a morte de Deus,
razão pela qual se poderia praticar tudo aquilo que se concentra no âmago do
sujeito. “‘Deus está morto!’ Foi sua mais célebre
proclamação. Como consequência, os homens deveriam
buscar valores que transcendessem a moral convencional divulgada pelo
cristianismo; um retorno ‘à ordem de castas, à
ordem hierárquica [...] para a conservação da sociedade, para que sejam
possíveis tipos mais elevados, tipos superiores - a desigualdade dos direitos é
a condição necessária para que haja direitos’. Concluiu dizendo: ‘Quais são aqueles que mais odeio no meio da canalha dos nossos
dias? A canalha socialista, os apóstolos [...] mirando o instinto, o prazer, o
contentamento do trabalhador no seu pequeno mundo - que o tornam invejoso, que
lhe ensinam a vingança [...] a injustiça nunca reside na desigualdade dos
direitos, ela está na reivindicação de direitos iguais’.”[1]
Para alcançar tamanha façanha, é preciso aprender a
declinar ou perecer até chegar ao grande desprezo, “onde a felicidade, razão,
piedade, justiça e valor presentes tornam-se repulsivos para nós”. Contudo, é
na busca de uma doutrina que possa restituir a “inocência” do “vir-a-ser” que
Zaratustra libertará o homem.
É neste
momento, além de muitos outros, que podemos vislumbrar algo comum no pensamento
nietzschiano, o pensamento cristão ao contrário, uma remodelação humana para
desconstrução do Cristianismo. Para o Cristianismo, liberdade significa sair de
uma condição tipicamente pecaminosa (prática dos apetites carnais e suas
concupiscências) para adentrar numa vida nova com valores eternos e imutáveis
direcionada para obediência pragmática[2] em
Deus. Para o Cristianismo, liberdade é abandono de tudo aquilo que é contrário
aos mandamentos divinos, enquanto que para Nietzsche liberdade é praticar tudo
quanto se tem vontade, superando a moralidade estabelecida. Sendo assim, o
homem é o meio, é a corda, é o canal entre o animal e o super-homem. Seu gênio tem que superar o último homem numa ação
criadora; será através desta transformação que o homem alcançará a situação de Übermensch.
Como Zaratustra ensinou, sua vontade deve determinar sua criação, pois sua
vontade é poder. O problema maior seria constatar sempre o eterno retorno do
mesmo, conceituado através de uma concepção circular do tempo, levando-o a
declarar que tudo é em vão.
Ora, se tudo é vão, a concepção nietzschiana
é um contrassenso! Como pode um homem querer fazer tudo quanto lhe apetece e no
final, depois de saciar/estimular sua fome e sede egocêntrica, dizer que tudo é
vão? Significa dizer que existe no seu íntimo um constante anseio de saciedade,
pois as vicissitudes mundanas não foram capazes de satisfazê-la. Quanto mais se
buscou tais satisfações mais se percebeu que elas estavam sempre distantes e se
distanciando ainda mais, provocando um desespero pela consumação, por exemplo,
do desejo carnal (numa linguagem bíblica). Salomão, após vivenciar práticas
contrárias aos mandamentos divinos, apresentou este problema quando relatou: “Porque todos os seus dias são dores,
e a sua ocupação é aflição”(Ec 2:23). Vê-se seu profundo desencantamento com o
mundo, apesar de satisfazer os desejos de seu coração, extrapolando, inclusive,
pelos caprichos das mulheres pagãs que o cercavam. Desta
forma, a associação que faz do homem a um animal está vinculada a um conceito
depreciativo porque na vida não consegue produzir algo expressivo (dentro dos
seus conceitos de eliminação da Deidade). Este homem prefere se prender a uma rotina
descompromissada com a superação, limitando-se pela satisfação das necessidades
e reverenciando o imaginário.
Em Considerações
Intempestivas, Nietzsche demonstra uma sociedade altamente despercebida e
desinteressada na consumação de suas próprias vontades. A superficialidade e a
concepção de uma história sem profundidade, não gerando objetividade, introduz
a ideia de redução nos sujeitos que se vêem obrigados a submeterem-se às
instituições. Tal atitude demonstra uma condição interior de muito potencial do
sujeito, entretanto, subjugada ao mascaramento exterior de uma identidade que
não deveria ser dele. Por esta razão, tenta incutir a ideia da personalidade
forte, uma personalidade não submetida, uma necessária para subjugar o passado.
É a ideia do super-homem.
Jesus, no
Evangelho de João (4:13-14), propôs uma metáfora para uma mulher samaritana que
de certa forma havia passado por experiências semelhantes as teorizadas por
Nietzsche (rompeu com os paradigmas de sua época não cedendo ao forte preconceito
feminino, relacionando-se inúmeras vezes e pertencendo a uma comunidade mista
de judeus e pagãos). No caso, Jesus entendeu a ânsia daquela mulher e sua busca,
por isso ensinou sobre uma fonte que a obrigava sempre dela beber e de outra
que sacia a sede definitivamente. Essa ânsia é na verdade a busca pela
satisfação espiritual e não pela física, no entanto, em muitos casos, o ser
humano não consegue discernir bem sua condição e a confunde.
O gênero
humano está sujeito à condição desviante. Os primeiros anseios e suspiros pelo
pecado não são identificados como tal. A utilização do corpo para a prática
pecaminosa com esquecimento da existência de Deus é uma constante na vida do
homem natural. Todos são atiçados pela curiosidade do ato, não há quem diga não,
porquanto na primeira condição de consciência estamos vencidos pelo pecado. Quando
se pratica atos pecaminosos se acaba por estimular o vício, engodando-se na
malha pegajosa do pecado, tornando-se desprovido de Deus e vencido pelo pecado.
Por essa razão, Jesus ensinou a condição do homem
pecador voltando ao poço de pecado: “Quem beber desta água tornará a ter
sede...”. A repetição da pratica consiste na ânsia constante de querer algo que
o satisfaça, mas também a percepção de que o beber da fonte mundana nunca
satisfaz, obrigando o agente buscador sempre ao eterno retorno do mesmo. Nietzsche conhecia profundamente esses
ensinamentos do Salvador. No entanto, a pergunta é: se Nietzsche sabia, então,
por qual razão buscou fazer o contrário dos ensinamentos cristãos? A resposta
para a questão é a rebeldia motivada. Nietzsche provou do dom celeste. Sua
família era protestante, seus avôs eram pastores e ele era apelidado de o pastorzinho na idade infanto-juvenil
devido sua devoção a Deus. Quando teve os primeiros contatos com os “mestres”
do universo acadêmico do seu tempo, Schiller, Hölderlin, Byron e Schopenhauer
(ateu), se afastou do Cristianismo. Motivado muito pelo que acontece nas
universidades (uma coerção de alunos e professores para que os recém-admitidos
possam “superar” sua fase de convicções cristãs) não conseguiu conciliar a fé e
a razão. Essa situação gerou distanciamento, revolta e a negação da existência
de Deus. Permitiu a proposição de ensinos sem moral, esquecendo-se que a moral
é instrumento que conserva a sociedade e o bem estar social, mas acrescentou a
possibilidade do homem se desviar de Deus através de um devir oriundo da sua filosofia. Enquanto Nietzsche procurou
apresentar um sistema teórico complexo para superação dos valores cristãos,
demonstrando as possibilidades e impossibilidades do ser humano, criando um
modo de viver perigoso para o destino eterno do homem, fazendo com que esse
criasse um ciclo vicioso de condutas prejudiciais ao ser natural e espiritual
de si, a essência do Cristianismo, através das palavras do Cristo e dos
apóstolos, nos apresentam a proposição objetiva, acertada e verdadeira da vida.
Os teóricos tentam alcançar um patamar superior para atingir a equiparação
entre os sistemas, no entanto, só encontraram desilusão.
A proposta de Nietzsche fundou-se
no nascimento de uma nova ordem para sustentar a posteridade de um super-homem. Sua filosofia formaria o
homem que desponta para a vida sem intervenções da moral, principalmente a
moral cristã, mas deixaria fluir os interesses particulares de seu ser,
produzindo o que de fato o homem seria capaz de produzir, sem se incomodar com
fundamentos do passado cuja parametrização fornece à vida uma conduta regrada. Assim,
acreditava em um antropocentrismo puro sem interferências. Promovia sua teoria
baseada nos sentimentos latentes dos homens cuja moral estabelecida forçava uma
maneira ordenada de viver sem cumprir com pilares erguidos e tradicionais.
Censurou uma sociedade hipócrita que não tinha coragem de tirar a máscara, mas
que continuava ocultando aquilo que lhe interessava fazer.
A proposição de
que tudo é possível ao homem, porque querer é poder, é engano. Sempre existe
uma consequência para uma concepção como essa. Defender o poder ilimitado do
homem é ordenar a insanidade, pois o homem tem suas limitações e não é um super-homem. Antes que o leitor pense
nessa consequência como um ato de castigo de Deus, não o é, pois é simples
consequência dos atos anteriores do homem. Saiba o homem reconhecer a consequência
dos seus maus atos. Como está escrito: “Porque o que semeia na sua carne, da
carne ceifará a corrupção...” (Gálatas 6:8). O determinante na ação é a vontade
humana que é contrária à vontade divina. Há explicitamente a exaltação do homem
e implicitamente a ideia de tornar Deus um ser ridículo e desprezível. A consequente
é a corrupção que remete a ideia de morte sob os dois aspectos, a física,
devido ao dano provocado pela prática demasiada das paixões e dos anseios
hedonistas, e a espiritual cujo destino é eterno e irremediável. O próprio
Nietzsche vivenciou esta experiência no fim de sua vida em estado de demência:
“Depois de 1888, Nietzsche passou a escrever cartas estranhas. Um ano mais
tarde, em Turim, enfrentou o auge da crise; escrevia cartas ora assinando “Dioniso”,
ora o “Crucificado” e acabou sendo internado em Basiléia, onde foi
diagnosticada uma “paralisia progressiva”. Provavelmente de origem sifilítica,
a moléstia progrediu lentamente até a apatia e a agonia”.
Eis Nietzsche no final de sua vida...
Mas, Jesus Ressuscitou....
Por Heládio Santos
Bacharel em Ciências Sociais
Especialista em Teorias da Comunição e em
Teologia Histórica e Dogmática
Referências
________. O pensamento de Nistzsche. Disponível em http://educaterra.terra.com.br/voltaire/artigos/nietzsche_pensamento.htm.
Acesso em 14 Out 2014.
_________. Nietzsche. Editora
Nova Cultural: São Paulo, 2005.
Ansell-Pearson, Keith. Nietzsche como pensador politico. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1997.
Nietzsche, Friedrich
Wilhelm. Considerações Intempestivas. Presença: Lisboa, Portugal, 1977.
[1] http://educaterra.terra.com.br/voltaire/artigos/nietzsche_pensamento.htm
[2] A tese
fundamental para o pragmatismo é que a
verdade de uma doutrina consiste no fato de que ela seja útil e propicie uma
espécie de êxito ou satisfação, de acordo com C.S. Peirce, W. James J. Dewey e
Friedrich J.C. Schiller. (de acordo com Dicionário Aurélio – Século XXI).
O pensamento de Nietzsche,infelizmente, está mais vivo do que nunca na mentalidade de uma sociedade tão edonista como a nossa,ainda que inconscientemente. Muito bom o artigo pastor, parabéns!
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