Após a era
apostólica, quando a doutrina cristã havia sido ensinada e encerrada pelo
legado dos apóstolos, alguns cristãos, bispos ou pastores na sua maioria,
dedicaram-se a reflexões e a comentários sobre os escritos inspirados daqueles
santos homens. A pretensão era de confirmação da Igreja no caminho proposto e
sua preparação para discernir, resistir e confrontar heresias.
Tertuliano, considerado Pai Latino da Igreja, foi um desses cristãos
eminentes do final do século II que se dedicou a produzir textos com esses
fins. Discorreu sobre vários assuntos relativos à fé: defesa do Cristianismo
diante de Roma, comportamento feminino, trindade, porvir, entre outros. Sobre a
alma, apresentou uma reflexão em nível filosófico para dialogar e contrapor-se
à filosofia pagã. Podolak (2010, p.37) nos apresenta um comentário sobre suas
intenções com respeito ao tema:
O autor se volta, então, para o testemunho da alma livre de toda superfluidade.
Expressões espontâneas como “bom Deus” ou semelhantes indicam que a alma humana
possui inata na própria consciência a noção da unicidade e da bondade de Deus.
O mesmo se deve dizer sobre o juízo divino (cap.2). A alma percebe também a
existência dos demônios, que querem a perdição do ser humano (cap.3)... Não
obstante as doutrinas filosóficas que lhe são sobrepostas, ela tem em si a íntima
convicção da ressurreição dos mortos, da sobrevivência da alma depois da morte
e das penas reservadas nos infernos às almas dos malvados. O testemunho da alma
é totalmente digno de fé porque provém de Deus. Ainda que se admita,
absurdamente, que ela derive da educação recebida, deve-se admitir sua
veracidade, uma vez que a literatura e a filosofia dos pagãos são deduzidas da
Bíblia, que as precede no tempo. Mesmo se desconfiado em relação à filosofia e
à literatura, o pagão não poderá não confiar na própria alma, por meio da qual
Deus lhe fala. O cristão, por outro lado, deverá permanecer fiel aos ditames da
própria íntima consciência.
Para Tertuliano, alma é o ente que torna o homem racional, capacitado
para o sentir e o pensar (undeunde et quoquo modo hominem facis animal
rationale, sensus et scientiae capacissimum). Em sua essência é simples,
rude, tosca e ignorante (Te simplicem et rudem et impolitam et idioticam
compello). Esses atributos são encontrados na alma que não sofreu as
influências acadêmicas nem se enveredou por reflexões desviantes da verdade.
Pode ser também a alma que apesar da influência filosófica a rejeita para
regressar ao estado de sua origem, resgatando a impressão mais virtuosa de sua
essência: a comunicação com Deus. Essa alma na qual Tertuliano diz encontrar a
verdade é pura e conserva as marcas do seu Criador, consequentemente, as
respostas às questões que inquietavam os filósofos poderiam ser encontradas
nela.
Com respeito a maior busca da filosofia, a verdade é a concepção de um
único Deus em quem todas as demais coisas poderiam ser explicadas. Encontra-se,
assim, o elo entre a incerteza e a convicção, ou seja, a transcendência para a
conclusão da existência de Deus e a negação da existência de outros deuses
(Ea uoce et aliquem esse significas et, omnem illi confiteris potestatem, ad
cuius spectas uoluntatem, simul et ceteros negas deos esse, dum suis uocabulis
nuncupas, Saturnum, Iouem, Martem, Mineruam. Nam solum deum confirmas quem
tantum deum nominas, ut, cum et illos interdum deos appellas, de alieno et
quasi pro mutuo usa uidearis), porquanto seriam digressões de almas más (Plane,
adicis, "sed homo malus", scilicet contraria propositione oblique et
figuraliter exprobrans ideo malum hominem, quia a deo bono abscesserit) que
não alcançavam o verdadeiro caminho da reflexão.
A alma é parte imaterial, consciente e dotada de memória. Sobre a
perspectiva natural, não pode experimentar nada de bom ou de mal sem o
compartilhamento do corpo. Sua existência isolada não comprometeria seu destino
eterno em condenação, porque aquilo que definitivamente a condena é somatizado
no cotidiano humano (quod et nihil mali ac boni sentire possis sine carnis
passionalis facultate, et nulla ratio sit iudicii sine ipsius exhibitione qui
meruit iudicii passionem).
O testemunho da alma provém de uma seqüência ou de uma característica sem
misturas. Tertuliano sistematiza o caminho desde o mais insignificante ao mais
complexo da seguinte maneira: começando pela verdade do fato (conclusão da alma
ou, ainda, acepção concreta da alma, fato explícito) passa pelos status de simples, vulgar, comum,
natural e divino (Haec testimonia animae
quanto uera, tanto simplicia, quanto simplicia, tanto uulgaria,
quanto uulgaria, tanto communia, quanto communia, tanto naturalia,
quanto naturalia, tanto diuina). Para compreendermos o sentido exato
da palavra, faz-se necessária uma inserção no campo da língua latina. O latim,
apesar de ser uma língua morta, é muito estudado devido, principalmente, a
muitas obras filosóficas originais serem encontradas nessa língua clássica.
Declinando as 6 (seis) palavras sublinhadas chegaremos às seguintes acepções:
uera, substantivo apelativo neutro de 2a.
declinação cuja ideia é de verdadeiro, de real e de certo que não deixa brechas
para dúvidas, ou seja, algo concreto e tangível ;
simplicia, adjetivo plural de 3a. declinação
cuja ideia é isolada, único, não composto. Não considerar isolada como algo
distante que não disponibiliza acesso, mas algo que está próximo e que não
precisa de absolumente nada para ser o que é porque é essencialmente pura e
valorativa;
uulgaria, adjetivo plural de 3a. declinação
cuja ideia é opinião comum (instalada na consciência coletiva, testemunhando
afirmativamente sobre aquilo que é verdadeiro);
communia, adjetivo plural de 3a. declinação
cuja ideia é o caráter comum, geral e pública (todos tem potencial para chegar
ao conceito de verdade);
naturalia, substantivo apelativo neutro,
relativo à essência natural do ser humano, inato (a própria natureza comunica a
verdade por ser ela oriunda de Deus e não ter sofrido alterações de sua essência,
continuando no estado intacto de sua criação);
diuina, adjetivo plural de 4a. Declinação,
cuja ideia é de substância divina(nos termos como dizia Sócrates), proveniente
de Deus, o Deus dos cristãos, único e genuíno Deus.
Dizia ainda que os preceitos cristãos são anteriores a qualquer outro
conceito e filosofia sobre a vida. Estavam escondidos em Deus antes de terem
sido fundadas as “colunas” do universo e fora transmitido para a alma do homem (percepção
da verdade). Assim, os pensadores que buscavam respostas para suas inquietudes,
admirados com a fenomenologia naturalista e pagã, deveriam buscar as respostas
nas suas próprias almas, recôndito aonde Deus falava. Não ouvir este testemunho
da alma é renunciar a própria capacidade de descobrir a verdade. É agir
irracionalmente.
Por Heládio Santos
Bacharel em Ciências Sociais
Especialista em Teorias da
Comunicação e em Teologia Histórica e Dogmática
Referências
Almeida,
António Rodrigues de. Dicionário de latim-português. Porto Editora:
Porto, Portugal, 2008.
Almeida,
Napoleão Mendes de. Gramática Latina. Editora Saraiva: São Paulo, 2011.
Podolak,
Pietro. Tertuliano. Edições Loyola:
São Paulo, 2010.
Saraiva,
F.R.dos Santos. Novíssimo Dicionário Latino-Português Etimológico,
prosódico, histórico, geográfico, mitológico, biográfico. Livraria Garnier:
Belo Horizonte, 2006.
Tertuliano. De
Testimonio Animae (texto em latim). Disponível em: http://www.tertullian.org/latin/testimonio.htm.
Acesso em 12 out 2014.